terça-feira, 4 de outubro de 2011

Animais têm direitos?


Deu na Folha de São Paulo (http://www1.folha.uol.com.br)

29.09.2011






No domingo passado --às cinco em ponto da tarde, suponho--, diante de 20 mil pessoas que lotavam "La Monumental", em Barcelona, "el matador" José Tomás fincou seu estoque no dorso de um touro de lide, atingindo seu coração. Foi o último suspiro do animal e, ao mesmo tempo, o derradeiro espetáculo de tauromaquia da Catalunha. A prática agora está proibida em toda essa região autônoma da Espanha. A pressão dos grupos que militam em favor dos direitos dos animais foi fundamental para a decisão do Parlamento local de banir as touradas.
De minha parte, nunca vi graça nesse tipo de exibição. Mas tampouco tenho interesse por "badminton", polo (aquático ou sobre a grama) e uma série de esportes olímpicos e não olímpicos e nem por isso acho que devam ser banidos. Dado que o touro em questão terminaria na panela de qualquer jeito, vale a pena conferir a defesa antropológico-estética que Francis Wolff, meu antigo professor de filosofia grega, faz das touradas para o jornal espanhol "El País".
A questão central aqui, me parece, é tentar definir se animais têm ou não direitos, o que nos remete a uma discussão sobre ética.
El Periódico.com
Numa simplificação grosseira da história da filosofia, existem duas matrizes de sistemas éticos. A primeira, que podemos chamar de deontológica, têm como expoentes Platão e Immanuel Kant. Para esses autores, são os princípios que importam. Regras como "não matarás" ou "não mentirás" valem incondicionalmente, porque estão amparadas pela ideia de Justiça, por Deus, pelo imperativo categórico ou por alguma outra entidade meio metafísica.
Aplicada aos animais, a ética deontologista produziu alguns exemplares interessantes. O filósofo Tom Regan, por exemplo, defende que animais que possuam certas habilidades cognitivas (lesmas e mosquitos, estão, portanto excluídos) são sujeitos de vida, o que os torna intrinsecamente pacientes morais, mesma categoria em que estão crianças pequenas e pessoas que sofrem de doenças neurológicas. Devem, portanto, ser legalmente protegidos, ainda que não tenham a capacidade de atuar como agentes morais.
Já Gary Francione, um dos pais do abolicionismo, sustenta que é preciso reconhecer um único direito dos animais: acabar com a noção de que eles possam ser propriedade de alguém. Os abolicionistas acusam pessoas e grupos que militam pelo bem-estar dos bichos de seguir o paradigma das sociedades protetoras do século 19, o que apenas atrasa a verdadeira libertação.
Na outra ponta dos sistemas éticos está o consequencialismo, cujos grandes defensores incluem Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Basicamente, eles dizem que não existem princípios externos abstratos como a ideia de Justiça que possam validar ou invalidar nossos atos. A única forma de julgá-los é através das consequências que acarretam. Vale dizer que são boas as ações que engendram bons resultados. No caso específico de Bentham (conhecido como pai do utilitarismo), o que importa é o princípio de utilidade, que pode ser traduzido na fórmula: "o maior bem para o maior número de pessoas".
No mundo animal, consequencialismo é sinônimo de Peter Singer, cujas ideias são extremamente estimulantes, em especial quando discordamos delas. Como utilitarista radical, Singer não acredita muito em direitos --nem para animais nem para humanos--, mas apenas em interesses, como o de evitar a dor e buscar o prazer. Agir moralmente nada mais é do que observar a regra que manda não infligir sofrimento desnecessariamente. E, para Singer, não há nenhum motivo para restringirmos o universo de aplicação dessa norma ao Homo sapiens. Todos os seres capazes de sentir dor, sustenta o autor, são dignos de igual consideração.
Discriminar um animal senciente apenas porque ele não é humano configura um caso de especismo, que o filósofo põe no mesmo patamar do racismo ou do escravismo, classificações não exatamente abonadoras.
É claro que, para Singer, nem todos os seres vivos têm os mesmos "direitos". O nível de consideração que cabe a cada qual é uma função direta de sua capacidade de perceber dor, prazer e até de fruir o transcendente --ou seja, de seu grau de consciência.
Numa leitura histórica, o círculo de solidariedade moral da humanidade vem se expandindo. Nos primórdios, o homem ligava apenas para si mesmo e, às vezes, para a sua família. Com o decorrer do tempo passou a preocupar-se também com seus vizinhos, compatriotas, irmãos de fé e, por fim, com todo o gênero humano. Agora, começamos a olhar para os outros bichos com os quais compartilhamos o planeta.
Essa é uma ideia radical que traz implicações radicais: para Singer, a melhor forma de não provocar dor evitável é convertendo a humanidade ao vegetarianismo. E vale observar que essa nem é a mais exuberante de suas teses.
Consequente com seus princípios, ele também considera aceitáveis o aborto, a eugenia e até o infanticídio. Se o grau de ªdireitosº está relacionado ao nível de consciência, seres menos conscientes podem, em certas situações, ser sacrificados, seja para reduzir o montante geral de dor, seja para produzir benefícios maiores. O australiano não chega a banir os experimentos com animais, desde que voltados a objetivos nobres como a produção de remédios para uso humano e também veterinário.
Outra tese polêmica de Singer é que todos os que já vivem com conforto têm o dever de doar parte de seus rendimentos para eliminar a pobreza do mundo. Ele próprio afirma abrir mão de 25% de seu salário em favor de organizações como a Oxfam e o Unicef.
O problema tanto com as éticas deontológicas como consequencialistas é que elas não param em pé sozinhas. Ou, para colocar a coisa de uma forma um pouco mais rigorosa, ambos os sistemas, se levados até o fim, produzem paradoxos que não estamos dispostos a aceitar. A impossibilidade de mentir em qualquer caso preconizada por Kant me levaria, por exemplo, a admitir a agentes da Gestapo que eu escondo judeus em meu sótão, delito que me custaria a vida bem como a dos fugitivos.
Já o consequencialismo me obrigaria a aceitar como válido o ato do médico que mata o sujeito saudável que entra em seu consultório para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pacientes que necessitavam de transplantes.
E por que devemos nos fixar num princípio de utilidade circunscrito a prazer e dor na forma como os experimentamos. Se abrirmos nossas mentes e abandonarmos nossos preconceitos neuroniocêntricos vamos verificar que muitos vegetais contam com sofisticadíssimos sistemas para evitar ser comidos. Ou seja, não é absurdo interpretar que não ªqueremº ser deglutidos. Um exemplo: algumas plantas, quando atacadas por lagartas, liberam odores que atraem libélulas, com o intuito de devorar as invasoras.
Se deixarmos a expansão do círculo de solidariedade correr solta, é uma questão de tempo até até que comecemos a nos importar com o bem-estar de insetos e couves de bruxelas. Desnecessário dizer que essa ampliação não pode ser indefinida. Precisamos parar em algum ponto, ou acabaríamos morrendo de fome ou presas de vírus e bactérias que também "desejam" manter-se vivos e "felizes". Numa visão um pouco caricatural, antibióticos se tornariam armas de destruição em massa.
Onde parar passa a ser a questão. Singer escolheu a capacidade de experimentar a dor. Reconhece, porém, que tem dificuldades para discriminar quais seres podem entrar em seu cardápio e quais não podem --moluscos são ou não sensíveis a estímulos dolorosos? Há, é claro, outras complicações. Se o critério é a dor, torna-se lícito matar animais anestesiados?
Quanto a mim, embora aprecie o rigor do pensamento de Singer e, como ele, defenda que não devemos infligir sofrimento desnecessário, nem a moluscos nem a couves de bruxelas, acredito que seria um contrassenso conferir direitos aos animais. É que direitos são construções sociais que vêm em pares dialéticos. Só pode haver direito onde existem deveres. E não dá para cobrar de um cavalo ou um leão que atuem como agentes morais. Assim, o máximo que podemos fazer é impor a outros humanos a obrigação de não maltratar bichos, mas esse é um dever que nos autoatribuímos, o que fica num degrau mais abaixo dos tão propalados direitos dos animais.
No fundo, o consequencialismo nos termos defendidos por Singer exige demais dos seres humanos. Ele parte da ideia fundamental de que os interesses de todos se equivalem e isso resulta num igualitarismo forte, que, levado ao extremo, acabaria com instituições como família e amizade, pois o filho de um desconhecido tem exatamente o mesmo valor que o meu; o mendigo com que cruzo na rua exige a mesma consideração que dispenso a meu melhor amigo. É uma lógica que pode perfeitamente ser exigida de entes abstratos como o Estado, mas que se torna praticamente inexequível quando aplicada a indivíduos.
Hélio Schwartsman
Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em Filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistã