Gatos, miau!
por Jerônimo Teixeira / Paulo Pelá
Você está curtindo um momento de relax depois de um dia de trabalho particularmente estafante. Acomoda-se no sofá para ler a Super, e – veja só que coincidência – seu gato aproveita para usá-lo como almofada, enrodilhando-se preguiçosamente sobre seu colo. Não demora muito, o bichano começa a produzir um ruído baixo e regular, acompanhado de uma certa vibração, como se acionasse um motorzinho secreto. Está ronronando. Bom, não é mesmo? Um daqueles prazeres exclusivos que só os elurófilos (aficionados por gatos) conhecem. O que você talvez não saiba é que aí no seu colo está um mistério científico.
Você está curtindo um momento de relax depois de um dia de trabalho particularmente estafante. Acomoda-se no sofá para ler a Super, e – veja só que coincidência – seu gato aproveita para usá-lo como almofada, enrodilhando-se preguiçosamente sobre seu colo. Não demora muito, o bichano começa a produzir um ruído baixo e regular, acompanhado de uma certa vibração, como se acionasse um motorzinho secreto. Está ronronando. Bom, não é mesmo? Um daqueles prazeres exclusivos que só os elurófilos (aficionados por gatos) conhecem. O que você talvez não saiba é que aí no seu colo está um mistério científico.
Ninguém sabe qual a função exata do ronrom. Ao contrário do que imagina a maioria das pessoas, inclusive aquelas que têm experiência com gatos, esse simpático ruído nem sempre é uma expressão de prazer. Gatos que se encontram em situações de estresse ou que estão sofrendo uma dor forte também ronronam. “Quando estão com dor, eles parecem usar esse ruído relaxante como uma espécie de mantra”, diz o veterinário João Telhado Pereira, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, especialista em comportamento animal. De toda forma, na situação em que você foi colocado no início da matéria – uma situação hipotética, claro, mas nem por isso menos confortável –, dá para supor que seu gato está tranqüilo e satisfeito, sem dor ou estresse. Agora, largue a revista por um momento e tente determinar de onde vem o barulho.
Você vai ter alternadamente a impressão de que o ronrom vem do nariz, ou da garganta, ou do peito do gato. Pois é outro mistério: ninguém sabe como os gatos ronronam. Os cientistas só têm conjecturas: o ruído seria produzido pela passagem de ar nos brônquios, ou por certos vasos do coração.
Gatos são mesmo fascinantes. Não é por nada que eles acumularam tantas lendas e equívocos ao seu redor. É o caso, por exemplo, do dito popular segundo o qual os gatos têm sete vidas. Felinos dos Estados Unidos e da Inglaterra são ainda mais sortudos: em inglês, dizem que eles têm nove vidas. Parece ser uma crença bem antiga – já aparece em um diálogo de Romeu e Julieta, peça de Shakespeare escrita no final do século XVI. Menos auspiciosa é a idéia, infelizmente ainda muito generalizada, de que o gato não é amigo do dono, mas da casa. Deve ter sido invenção desse pessoal que gosta só de cachorro. A oposição entre cães e gatos, no entanto, é criação humana. Eles não são inimigos naturais e podem conviver muito bem sob o mesmo teto. (Aliás, o autor desta matéria esclarece que gosta igualmente de ambas as espécies e jamais escreveria sobre uma em detrimento da outra.)
Gatos e cachorros, é verdade, relacionam-se com o dono de modos diferentes. Os cães são animais gregários. Seus equivalentes selvagens, os lobos, vivem e caçam em grupo. Em situação doméstica, o cão tende a ver o dono como uma espécie de chefe da matilha. Os gatos, ao contrário, são individualistas. Os felinos, em sua maioria, caçam sozinhos – a exceção célebre é o leão. Isso conduz a formas diferentes de socialização com os humanos. “Nós somos visitantes no espaço deles. Eu moro na casa dos meus gatos”, afirma Luiz Paulo Faccioli, juiz internacional de concursos de gato promovidos pela TICA (sigla em inglês para Associação Internacional de Gatos).
Isso não significa que eles devam mandar na casa. É o que ensina o treinador Bash Dibra, em CatSpeak (ainda inédito no Brasil). O título pode ser traduzido livremente como “A língua dos gatos”, o que resume bem o espírito do livro, espécie de manual de auto-ajuda para donos de gato. Dibra, que acumulou vasta experiência com lulus e bichanos – sua clientela inclui os animais de estimação de celebridades como Jennifer Lopez e Kim Basinger –, revela inclusive algumas técnicas básicas para ensinar truques ao seu animal. “É mais fácil ensinar um cachorro”, diz o autor. Mas isso não quer dizer, como muitos pensam, que os gatos não sejam capazes nem mesmo de atender quando chamados pelo nome. É preciso apenas conhecer a abordagem correta. “Com o cachorro, você manda que ele faça alguma coisa. Com o gato, você pede”, afirma Dibra.
CatSpeak traz um capítulo dedicado à comunicação felina, com uma espécie de dicionário de sons e posturas corporais. Alguns dos “verbetes” são de conhecimento comum. Se um gato arreganha seus dentes, eriça o pêlo e emite um ruído baixo e ameaçador, não é preciso ser especialista em felídeos para saber que ele não está de bom humor. Mas e se o gato de repente salta para perto da janela, mira fixamente um ponto na rua e começa a fazer um som trêmulo, entrecortado, que lembra, de longe, uma metralhadora rouca – você saberia dizer o que houve? Dibra mata a charada: esse é o ruído que o gato faz quando vê uma caça potencial que está fora do seu alcance. Muito provavelmente, ele vislumbrou um passarinho ou uma borboleta voando lá fora.
O mais curioso é que grande parte das emissões sonoras dos gatos são dirigidas a nós, donos de um felino. É o que comprova um recente experimento de psicologia evolutiva realizado por Nicholas Nicastro, pesquisador da Universidade de Cornell, Estados Unidos. Nicastro compilou uma amostra de 100 vocalizações (miados) de 12 gatos. Depois, fez com que dois grupos de voluntários (humanos, bem entendido) ouvissem as gravações. Pediu que o primeiro grupo, com 26 pessoas, atribuísse notas de 1 a 7 conforme o nível de prazer comunicado em cada uma das vocalizações. O segundo grupo, com 28 indivíduos, deu notas na mesma escala tomando como critério a urgência ou aflição dos miados. Nicastro então analisou os miados acusticamente e afirma ter chegado a resultados consistentes. Vocalizações mais longas, do tipo miAAAUU, ganharam notas altas em aflição e baixas em prazer. É o que se ouve quando o gato está com fome.
Com os miados mais curtos, foi o oposto: conceito alto em prazer e baixo em urgência. Esses sons começariam em notas altas e depois baixariam. Algo como MIIIau.
“Todo animal de estimação enfrenta o problema de obter o que deseja dos seus donos humanos”, afirma Nicastro. Os gatos, convivendo com o homem há 5 000 anos, desenvolveram seus meios vocais para conseguir o que querem. “Os cães utilizam outros meios, como a linguagem corporal, a expressão facial etc. Existe uma pesquisa em curso sobre o modo com que os seres humanos entendem os latidos, mas, na minha opinião, os resultados ainda são inconclusivos”, diz o pesquisador. Nicastro, porém, não está afirmando que os gatos falam. Quando miam, estão manipulando o dono para obter o que desejam. Não é nada lisonjeiro, mas é algo que você precisa saber: nós também somos animais treinados.
Nicastro acredita que o miado teve um papel central na evolução dos gatos. Ele esteve em um zoológico da África do Sul gravando os sons de um Felis silvestris lybica, o gato selvagem que é tido como ancestral do Felis catus aí no seu colo. A vocalização do gato selvagem não se revelou muito expressiva: só sugeria irritação. Os primeiros gatos a serem adotados pelo homem teriam se destacado, segundo Nicastro, por emissões vocais agradáveis. Os gatos mais hábeis na manipulação vocal do ser humano teriam progressivamente cruzado entre si, gerando ninhadas de gatinhos cada vez mais espertos no uso do gogó.
Mesmo sem a intervenção consciente e direta do ser humano, o resultado seria similar àquele processo que, nos termos da teoria da evolução de Darwin, é conhecido como seleção artificial – a ingerência do ser humano sobre a reprodução de determinada espécie, para obter espécimes melhorados (é o que acontece, por exemplo, quando um criador de gado busca um reprodutor premiado para cruzar com sua vaca mais gorda).
Há controvérsias. O especialista em comportamento animal John Bradshaw, da Universidade de Southampton, Inglaterra, afirma que o uso dos miados para manipular os donos é resultado de aprendizagem individual e não da evolução. Diferentes gatos usariam diferentes tipos de miado para obter a mesma coisa. Nicastro, porém, não está pronto a entregar os pontos: “Traçar uma distinção clara entre aprendizagem e evolução é um erro. A evolução influi sobre a competência ou a rapidez com que uma espécie aprende a produzir vocalizações apropriadas”.
Talvez um dia a ciência dê a palavra final sobre a importância da evolução no miado (ou do miado na evolução). Mas não estará dando termo ao mistério que cerca o gato. Supõe-se que ele foi domesticado alguns milhares de anos depois do cão. Sua convivência com o homem tem sido irregular, acidentada, com períodos de deificação e perseguição. No antigo Egito, o gato foi literalmente a salvação da lavoura. Domesticado para controlar os roedores na cultura de grão ao longo do rio Nilo, acabou merecendo um lugar no panteão dos deuses. A deusa Bastet, que protege o deus-sol Rá de uma serpente, é uma gata.
Uma lenda muçulmana conta que, certo dia, a gata de Maomé estava dormindo sobre o manto do dono quando ele foi chamado para uma batalha. Maomé não cogitou acordá-la: preferiu cortar o manto com a espada. As crendices cristãs não foram tão simpáticas com o gato. Na Idade Média, ele foi caçado em toda a Europa por sua suposta associação com feiticeiras – o que contribuiu para que a peste, transmitida pela pulga dos ratos, fizesse sua colheita mortal entre os assustados cristãos.
O gato seria reabilitado nos séculos seguintes, mas, ainda hoje, subsistem algumas superstições de provável origem medieval (gato preto dá azar etc.). Na literatura, esse singelo animal doméstico muitas vezes parece ter um pé no mundo real e outro no além – o exemplo mais inquietante será O Gato Preto, do americano Edgar Allan Poe (1809-1849). Mesmo o sorridente Gato de Cheshire, criação do inglês Lewis Carroll (1832-1898) em Alice no País das Maravilhas, tem qualquer coisa de bizarro em sua invisibilidade parcial. A Rainha de Copas manda que o gato seja decapitado, mas seus guardas são incapazes de cumprir a ordem. Como podem cortar a cabeça de um bicho do qual só se enxerga o sorriso? É uma bela representação da nossa relação com os bichanos. Independentes e orgulhosos, eles não se submetem a nossos caprichos autoritários.
Os poetas têm uma predileção particular pelo gato. O francês Charles Baudelaire (1821-1867) dedicou-lhe alguns poemas célebres de As Flores do Mal. O americano naturalizado britânico T.S. Eliot (1888-1965) foi mais longe e dedicou um livro inteiro aos felinos. No Brasil, poetas contemporâneos como Haroldo de Campos, Ferreira Gullar e Nelson Ascher têm dado seguimento à tradição, tomando o gato como tema de seus versos.
A imagem dos felinos na cultura pop não é unívoca. Temos o simpático e psicodélico Felix, o gordo e cínico Garfield, e vários gatos atrapalhados e famintos, sempre frustrados na perseguição da sua caça – os mais famosos são Frajola e Tom. A violência implícita de desenhos como Tom e Jerry foi levada a extremos sangrentos na genial paródia Comichão e Coçadinha, que figura em alguns episódios de Os Simpsons. E não podemos esquecer os luxuriosos gatos de Striptiras, quadrinhos do brasileiro Laerte.
Enquanto escreve essa matéria, o repórter está sob a vigilância das pupilas oblongas do seu gato Sig, empoleirado sobre uma estante de livros. O melhor lugar para ter um gato, de qualquer modo, não é sobre os livros, mas no colo – bem aí onde ele se acomodou quando você, leitor, estava ainda no primeiro parágrafo. Bash Dibra usa a palavra “beleza” para descrever nossa comunicação com os gatos. O autor de CatSpeak não está exagerando. A ciência está apenas começando a entender essa curiosa comunicação entre espécies diferentes. Mas quem tem um gato já a conhece muito bem.